Márcia Carvalho
O Brasil registrou queda de 5,4% nas Mortes Violentas Intencionais (MVI) em 2024. Os dados, divulgados no Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2025, indicam redução nos homicídios dolosos, latrocínios, mortes por intervenção policial e lesões corporais seguidas de morte. Um alívio? Talvez. Mas a face mais cruel da violência persiste e avança, justamente onde o país deveria ser mais protetor: entre mulheres, crianças e adolescentes.
Enquanto os assassinatos diminuem, a violência doméstica cresce, silenciosa e letal. Feminicídios, abusos infantis, crimes psicológicos e perseguições virtuais se espalham como um rastro invisível. O relatório mostra que, no Brasil, a paz ainda não chegou para quem mais precisa dela.
A permanência brutal da violência de gênero
Os homicídios de mulheres parecem ter se estabilizado, mas o recorte de gênero revela uma tragédia: entre 2013 e 2023, 47.463 mulheres foram assassinadas. Treze por dia. Em 2023, foram 3.903 mortes uma taxa de 3,5 assassinatos para cada 100 mil mulheres.
Em 2024, o país registrou 1.492 feminicídios. Um crescimento de 7% em relação ao ano anterior. Houve ainda 3.870 tentativas e mais de 51 mil casos de violência psicológica contra mulheres.
Quase todas as vítimas, 97%, foram mortas por homens. E, em 64,3% dos casos, o crime ocorreu dentro de casa. Lar, para muitas, continua sendo sinônimo de medo.
O perfil dos agressores confirma o padrão: 8 em cada 10 feminicídios foram cometidos por parceiros ou ex-parceiros. A maior parte das vítimas era negra (63,6%) e tinha entre 18 e 44 anos, mulheres em plena fase produtiva, arrancadas do convívio por um sistema que insiste em invisibilizá-las.
A cada estatística, o racismo estrutural se desenha com nitidez. Não é apenas uma crise de segurança. É também uma crise de valores e de prioridades.

Stalking: o medo que não aparece na foto
O anuário também registra um salto preocupante nos casos de stalking perseguições obsessivas que causam medo, ansiedade e controle. Foram 95.026 registros em 2024, um aumento de 18,2% em comparação ao ano anterior.
Esse tipo de violência, muitas vezes banalizado ou ignorado, tem alvo certo: mulheres. E um perigo real. Em boa parte dos casos, o perseguidor é um ex-companheiro, alguém que se recusa a aceitar o fim e transforma o “não” em ameaça.
O stalking pode ser o primeiro passo de uma escalada que termina em agressões, sequestros ou feminicídio. É preciso levá-lo a sério — antes que vire estatística fatal.
Medidas Protetivas
A violência doméstica gerou mais de 1 milhão de chamadas à Polícia Militar, apenas em 2024, por descumprimento de medidas protetivas de urgência. Ao todo, foram concedidas 555 mil ordens de proteção.
Mas os números revelam também os limites da lei: 10,8% dessas medidas foram ignoradas pelos agressores.
O dado expõe um gargalo grave. A medida protetiva, que deveria garantir segurança, ainda falha em impedir o acesso do agressor à vítima. Faltam fiscalização, estrutura e acolhimento.
Ao mesmo tempo, o volume de concessões mostra que as mulheres continuam recorrendo à Justiça. Elas não desistiram. E é justamente por isso que o Estado precisa responder com mais que papel e promessa.
O Brasil segue reduzindo os homicídios, mas ainda não aprendeu a proteger quem mais precisa. No balanço da segurança pública, a vida das mulheres e das crianças continua em risco. Não basta sobreviver — é preciso garantir o direito de viver sem medo.
Crianças em risco: a violência começa dentro de casa
Outro dado que salta aos olhos no Anuário é o aumento da violência contra crianças e adolescentes. Em 2024, foram 2.356 registros. Mas o número que mais assusta é o das mortes violentas: houve um crescimento de 3,7% em relação a 2023.
Grande parte dessas agressões ocorre no ambiente doméstico. Crianças de 0 a 4 anos são as mais afetadas — violentadas dentro do próprio lar, onde deveriam estar protegidas. Muitas dessas tragédias acontecem em silêncio, longe dos holofotes, sem manchete. A dor não vira notícia, mas destrói famílias inteiras.
No Maranhão, um dos casos mais estarrecedores de 2025 ocorreu em Trizidela do Vale. Maria Ísis, uma menina de apenas 5 anos, foi levada desacordada ao hospital pelo próprio padrasto. Tinha o corpo marcado por lesões graves. Não resistiu. O homem foi preso como principal suspeito. A mãe, que inicialmente permaneceu em silêncio, acabou detida após confessar que presenciou as agressões.
O caso gerou comoção e revolta. E escancarou o que os números já tentam dizer: a infância no Brasil ainda está sob ataque muitas vezes, dentro de casa, por quem deveria amar e cuidar.

Estupro de vulneráveis
O país também bateu um recorde triste em 2024: 87.545 casos de estupro, o maior número da série histórica. Desses, 76,8% foram classificados como estupros de vulnerável contra pessoas incapazes de consentir, como crianças ou pessoas com deficiência. A imensa maioria das vítimas (87,7%) era do sexo feminino.
As principais vítimas continuam sendo meninas e adolescentes, com destaque para a faixa entre 10 e 17 anos, que concentrou quase um terço dos casos (32,9%).
Os dados escancaram a urgência de políticas de proteção integral que envolvam não apenas a segurança pública, mas também educação, saúde e assistência social. O cuidado com a infância não pode ser fragmentado. É responsabilidade coletiva.